quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Cegos no Cinema?

-O que está acontecendo agora?
-Eles estão correndo e... Nossa!
-Nossa o quê? Eles quem? Estão correndo aonde?
-Não estão mais correndo, eles caíram e... ih, agora já mudou de cena.
Som de fogo e explosão.
-O que foi isso? O que foi isso?
-Ai meu Deus! Eu não posso nem olhar.
-Caramba, o que foi? Me conta!
-Estou tapando os olhos, eu não posso ver isso!
-Quem não pode ver aqui sou eu, que sou cego. Você pode e precisa ver, pra me contar! Vai, abre os olhos, por favor.
Som de beijo.
-Ah, agora eu sei do que se trata, eles estão se beijando, não é?
-Pois é, e ele está passando a mão pelo... Ulalá!
-O quê? O quê?
-Cara, nem te conto.
-Conta sim, conta sim.
Som de tiro, e muito silêncio em seguida.
-Quem acertou quem? Quem morreu?
-Puxa vida! Foi, foi... BUAHHH!
-Para de chorar e me conta, por favor!
-Eu... não consigo... falar, estou... muito emo... emocionado, cara.
Fim do filme.
-Puxa! Que filmaço, hem?!
-É... filmaço, filmaço.
Certamente todas as pessoas cegas já passaram por situação semelhante, ou pior. Quem não enxerga também deseja saber o que está acontecendo, também deseja se emocionar e experimentar as maravilhas da sétima arte. Mas, para nós que temos a deficiência visual como companheira, este prazer sempre esteve ligado à dependência, à boa vontade de outra pessoa para nos descrever toda a parte visual das cenas, essenciais para o entendimento do filme. Muitos até se aventuram a assistir sozinhos a uma projeção, e se desdobram em perspicácia e talento dedutivo para captar o que podem a partir dos sons. A verdade é que todo ser humano, mesmo que não enxergue ou não escute, estremece com as vibrações e com o cheiro de um cinema, vibrações sentidas na cadeira, no corpo, na alma, nas lembranças de infância. Todo ser humano deseja, precisa e tem direito à arte.
Para preencher essa lacuna dos espectadores cegos e quebrar qualquer barreira entre eles e o cinema, o teatro e qualquer espetáculo também visual, foi criado um recurso chamado Áudio Descrição, que é uma narração organizada de todas as informações visuais de uma cena, como cenários, figurinos, expressões faciais e corporais, entrada e saída de personagens de cena e qualquer mínima ação importante na trama. O áudio descritor assiste antes ao filme ou espetáculo e escreve um roteiro para sua narração, que pode ser feita ao vivo ou gravada, no caso de filmes em DVD, internet ou televisão. E os outros pagantes do cinema não precisam se preocupar, pois o usuário ouve sua descrição com fone de ouvido, acoplado a um aparelhinho semelhante a um radinho, que é pego e devolvido na porta do cinema.
A áudio descrição teve seu início nos anos 80, nos Estados Unidos e Inglaterra, e somente duas décadas depois chegou ao Brasil, inicialmente com o Festival Internacional de Filmes Sobre Deficiência ASSSIM VIVEMOS. Depois o recurso foi sendo introduzido em espetáculos teatrais, musicais, óperas, dança e até desfile de moda.
Em 2007, no Assim Vivemos apresentado na cidade do Rio de Janeiro, tive meu primeiro contato com a áudio descrição. Minha emoção e plenitude foram tamanhas que praticamente acampei no Centro Cultural do Banco do Brasil e fiz um intensivão, assistia aos variados filmes, da primeira à última sessão da noite. Eu fazia questão de não convidar ninguém para me acompanhar, a alegria de viver a independência, a autonomia e a dignidade era tanta que eu queria me fartar daquela emoção. Pela primeira vez eu tinha a oportunidade de assistir a um filme em paz, sem precisar cutucar ninguém para me dar mais detalhes, pude chorar e rir à vontade, fiz amigos no cinema, cegos ou não, e pude discutir o filme com eles depois, em condição de igualdade.
Ontem vivi felicidade semelhante, ao assistir em casa, pela primeira vez em minha casa, a um filme com áudio descrição, que é a vida de Chico Xavier. A narração está ótima, mas ainda senti falta de mais informação. As pessoas que assistiam comigo fizeram a gentileza de completar a descrição, em alguns momentos em que realmente cabia mais informação, momentos silenciosos em pausas de diálogos.
No circuito comercial o primeiro filme brasileiro com áudio descrição foi Irmãos de Fé, do Padre Marcelo, lançado em 2005. Foi preciso lutar e esperar mais 5 anos para que uma segunda produção brasileira também adotasse o recurso. Eu me interesso imensamente pelos assuntos de fé e de espiritualidade, mas devo aqui dizer, em nome de todas as pessoas com deficiência visual desse país, que nos interessamos por todos os temas e que estamos aí, nas filas dos cinemas, teatros, diante da TV e do computador, consumidores como qualquer outra pessoa, ávidos por informação e cultura como qualquer outra pessoa.
No Brasil, todas as emissoras de TV terão que incluir pelo menos duas horas semanais de programação áudio descrita até primeiro de Julho do ano que vem. É uma grande conquista, mas ainda é muito pouco diante da necessidade e do tempo de reivindicação.
Conheçam mais este recurso nos endereços:
http://vergaranunes.com/audiodescricao/
http://blogdaaudiodescricao.blogspot.com/

Um comentário:

  1. Texto muito interessante, que reflete todas as dificuldades da maioria dos deficientes visuais que não tem acessiblidade ao cinema que demanda a visão para captar as imagens simultaneamente no plano global. Que fazer para modificar essa desagradável e excludente realidade já que, considerando a relação custo/benefício, não é compensatório para a indúsria cinematográfica investir na audiodescrição?
    Vamos continuar tentando, impondo nossa presença nos cinemas!

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