quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Desafio da Bailarina

Sara cantando, e Aline dançando na ponta dos pés

Vésperas do Natal de 2007. Quem andava pelo aeroporto internacional de Brasília por essa época provavelmente se deparou com cenas inusitadas: música ao vivo em diferentes pontos do aeroporto, com um belo violão e uma voz feminina, um contador de histórias muito diferente e alto astral, um rapaz que falava, e cantava, com as mãos na língua de sinais ao lado da cantora e uma bailarina pequena e graciosa para completar o show. Tudo isso fazia parte de um presente de Natal que o aeroporto oferecia a seus usuários e funcionários e também parte de uma capacitação para os funcionários de uma determinada empresa para atenderem melhor a pessoas com deficiência. A cantora do projeto era eu, e a bailarina, que por vezes, entre uma dança e outra, enchia de ternura e curiosidade os olhares que a viam passar sentada sobre uma grande mala empurrada num carrinho de bagagem, com seus brilhos, cores e encantos diferentes, era Aline, a bailarina mais linda que já conheci.
Eu estava sozinha no quarto do hotel, mas sabia que já na primeira noite chegariam Aline e sua mãe. Então foi assim, já nos conhecemos compartilhando o mesmo cômodo, trocando histórias antes de dormir, indo tomar café da manhã juntas e nos ajudando mutuamente. No dia seguinte que nos conhecemos, já nos conhecíamos havia anos! Na verdade eu e a mãe da Aline, Dona Eleide, trocávamos muitas histórias e informações de vida, mas Aline, sempre calada, muito quieta, apenas responde o que perguntamos, sem muitas palavras, e de vez em quando manifesta alguma vontade, porém sempre agradece e pede desculpas quando necessário, educada e gentil como uma perfeita bailarina, graciosa em tempo integral. Mesmo falando pouco, ela participa de outras maneiras, demonstra seus afetos de outros modos, e na dança, ah, na dança ela diz tudo, ela diz plenamente o que sua alma quer, ela diz com muita alegria e sorrisos coisas que fazem chorar, ela diz coisas que ninguém nunca havia me dito. No palco e na música ela encontra seu lugar, sua expressão, sua melhor comunicação com o mundo, com os corações das pessoas. Tudo que ela reclama de dor enquanto sua mãe lhe prende os cabelos ou abotoa-lhe o figurino, já esqueceu no momento em que sobe na ponta da sapatilha e se posiciona no palco. A música começa, e ela é só graça e leveza; saltitos, giros, espacatos, tudo com muita alegria e concentração. Por trás, toda a disciplina, esforço, força, equilíbrio e sacrifícios que sabemos que são necessários na vida de uma bailarina. E de vez em quando, algo parece dar errado; apenas parece. Se uma sapatilha sai do pé, ela continua dançando; se o cd pula, ela não para de dançar e logo se ajusta novamente à música; se o dj, desavisadamente, para a música antes da hora, porque o volume dos instrumentos se abaixa na dinâmica da orquestra naquele momento, ela finaliza a dança com um movimento ou postura de fechamento e faz logo seus agradecimentos corporais. E se ela não conhece a música que será tocada ao vivo e não tem uma coreografia montada para a mesma, ela então não dança, é pedir demais de sua capacidade de adaptação e de solução de problemas. Engano nosso... Eu cantava um samba de minha autoria no palco, enquanto Aline se alongava perto da caixa de som; de repente me contaram que ela estava sambando na ponta e improvisando movimentos. Perguntei então se ela gostaria de me acompanhar e improvisar no palco, até mesmo em outras músicas. Prontamente ela disse “sim, quero” e desde então é o que mais temos feito, há quase três anos. Minha música e sua dança tem sido uma combinação que mexe com as pessoas.
Outro dia Aline dançou muito, umas vinte vezes da manhã até a noite. Ao fim da última apresentação, tirou as sapatilhas chorando de dor nos pés. Não reclamou o dia todo e se mostrava completamente disponível quando a chamávamos para mais uma dança. E por isso e por tantos outros motivos essa bailarina me encanta. Eu gostaria de entender como ela consegue me emocionar às lágrimas enquanto dança, mesmo sem que eu possa enxergar seus movimentos. Sim, as pessoas me descrevem os movimentos de Aline, eu já a toquei enquanto ela dançava, já vi seus movimentos de outra maneira, mas sempre que ela dança, perto ou longe de mim, tenho vontade de chorar. E não sou só eu, tantas pessoas por aí a fora, que estão ou não acostumados a assisti-la dançar, pessoas que conhecem ou não sua história, certamente se emocionam. E sua história é bastante interessante; apesar das coisas que contei sobre ela, coisas comuns na vida de uma bailarina, sua história não é nada comum. Aline nasceu com a síndrome de down, e é a única bailarina com esta síndrome que se sabe no mundo que dança na ponta da sapatilha. Ela já dançou em grandes palcos do Brasil e desafia tantos conceitos e tendências de pessoas com síndrome de down. Não tente entrevista-la, conversar com ela sobre arte, sobre dança, sobre filosofia ou mesmo sobre a deficiência dela, nem peça para ela somar dois e dois, mas presencie sua dança e o diálogo estará estabelecido, você ouvirá tanto sobre profissionalismo, disciplina, superação e talento bem aplicado. Quem convive ou tem um pequeno conhecimento sobre a síndrome de down, sabe das limitações do corpo de quem tem a síndrome, como equilíbrio, firmeza, controle de peso e às vezes até coordenação de movimentos. No entanto, quem conhecer a fundo a história de Aline Favaro, que é revelada inclusive num livro escrito por seu pai, João Tomaz, entenderá também que tudo é possível para uma pessoa com deficiência quando existe a aceitação e apoio da família, e que as capacidades e talentos extraordinários estão em todos nós.
Minha amada colega de trabalho e amiga Aline Favaro completa vinte e nove anos no próximo dia 15 de Outubro, e fica aqui parte da minha homenagem a ela. Aline, moça linda que tem medo de altura, e nem sabe que na verdade está mais no alto que todo mundo, obrigada por estar entre nós!

Conheçam mais em http://www.bailarinaespecial.com.br

Um comentário:

  1. Texto lindo Sarinha.Me emocionei.E ao ler fiquei imaginando os movimentos dela. Parabéns para a Aline! Beijos Thayra

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