terça-feira, 30 de novembro de 2010

Prêmio Absurdo da Semana

“Nossa Senhora do serrado, protetora dos pedestres que atravessam o Eixão às seis horas da tarde, fazei com que eu chegue são e salvo na casa da Noélia!” Essa deliciosa música-oração, praticamente escondida em um dos CDs da Legião Urbana, eu ouvia muito na minha adolescência. E escutá-la ali, na terra do Renato, ao fim do filme BRAXÍLIA no Festival do Cinema de Brasília, fez lembrar dele e sua imensa força, sua imensa voz celebrada por geração após geração até hoje, fez lembrar dos difíceis tempos de adolescente, fez lembrar da cumplicidade com minha irmã, quem me ensinou a gostar daquela voz, e me fez chorar. Assim parecia terminar mais uma semana de aventuras sexta passada, mas na verdade ela ainda se findaria com mais fortes emoções...
Semaninha agitada, pessoal, em que descobri como estar em 3 estados e 5 cidades entre segunda e sexta-feira. Pois é, levada pelo trabalho, pela arte, por minha missão, consegui esta façanha. E, nessas andanças em rodoviárias, aeroportos, metrôs, passei pelas mãos dos mais diversos guias: funcionários, aerotios, passantes, anjos bons; além de ter reencontrado queridos amigos antigos e feito novos. Por onde andei e o que andei fazendo? Bom, eu precisaria de mais inúmeras postagens pra contar com os merecidos detalhes todos os eventos, todos os encontros, todas as viagens e histórias da semana, que não foram poucas. Mas destaco aqui algumas das situações mais marcantes, seja positiva ou negativamente.
Comecemos então, senhoras e senhores, pelos destaques que concorrem ao “prêmio ABSURDO da semana”: em plena segunda-feira, próximo a um estúdio de som no Rio de Janeiro, encontrei meus amigos músicos Júlio Ribeiro e Luiz Otávio, ambos colegas de apagão. Eu acabara de chegar de Volta Redonda e puxava minha mala de rodinhas. Éramos então três cegos e uma mala rua afora procurando a entrada do estúdio. Ninguém parecia passar na rua para pedirmos ajuda. Julinho telefona para dentro do estúdio e pede orientação, dizendo que somos cegos e que precisamos de ajuda; e o amigo do outro lado: “Tu segue um muro branco até o final e vira à direita.” Bacana! Então a gente espera passar alguém e não pergunta onde é a entrada do estúdio, a gente pergunta se aquele ali é o muro branco. Hehehe! Depois, concorrendo ao mesmo prêmio, vem a rodoviária de Campinas, já citada aqui no Boca como mau exemplo de colocação do piso tátil. E adivinhem o problema agora: ele próprio outra vez. Eles lá planejaram um belo natal para seus usuários, com lindas bolas e luzes coloridas e enfeites que inspiram os melhores votos natalinos, paz e felicidade a todos os viajantes. Mas talvez a mesma felicidade e paz não sejam possíveis à árvore de Natal e ao pobre do Papai Noel enorme instalados BEM no meio do piso tátil... Nessas horas eu queria até enxergar pra ver a cena comédia pastelão do cego caminhando cheio de pressa por sua pista tátil e, com sua varinha mágica, botando pra dormir papai noel, árvore, pisca-pisca, melhores votos, paz, felicidade e estrela de Belém. Que tristeza... Isto foi na quarta-feira, e no sábado, após ter presenciado uma aerotia do Aeroporto Internacional de Brasília pedir informações sobre a minha pessoa à minha acompanhante e não a mim, julguei completa a lista de micos candidatos ao prêmio, mas, pra minha surpresa, o vencedor ainda estava por vir... No mesmo dia, já em São Paulo, eu e minha amiga Tábata Contri dávamos um passeiozinho gostoso de carro no fim da tarde. Paramos em frente a uma loja de fantasias, cheia de degraus na entrada. Minha amiga é usuária de cadeira de rodas, e eu, uma mera aprendiz no apagão; a única solução que vimos naquela hora foi tentar fazer com que a atendente viesse até nós. Do carro, gritamos, gritamos, chamamos, e demorou até que uma senhora se convencesse de que não se tratava de uma molecagem e fosse até a porta. Ainda de longe, Tábata explicou a situação. Com muita má vontade, a senhora veio nos atender na calçada. Sem nenhuma vontade de vender, forneceu a Tábata as informações solicitadas sobre determinados itens da loja. “Sua loja tem muitos degraus, moça- dizia Tábata –e se eu vier experimentar essas roupas? Terei que trazer um homem bem forte?" e a mulher respondeu sem nenhum pesar: “É, só se for.” Fala sério, minha senhora, é por causa de criaturas como você que precisamos de leis e fiscalização dura pra tornar nosso país acessível, porque para as pessoas sensíveis e criativas, basta se esbarrar no problema para se pensar na solução. E, empatado no primeiro lugar com esta mulher, está o homem que, horas depois, bateu no carro em que estávamos e não fez nem menção de parar. Nosso anjinho da guarda é muito bom e ninguém se machucou, mas agora a motorista, cadeirante, precisa sair pelo banco do carona porque sua porta não abre devido à pancada e tem um carro amassado. Nota ZERO pra você, meu amigo.
Graças a Deus, a semaninha também foi recheada de atitudes louváveis, mas estas, concorrentes ao “Troféu ARRASOU” DA SEMANA, DEIXO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM. Aguardem, comentem, fiquem bem!


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Teatro dos Sentidos

Uma experiência inesquecível... Hoje, por força desses encontros mágicos do destino, conheci o Teatro dos Sentidos, e assisti à peça encenada por eles: Feliz Ano Novo. Nem sei se posso dizer que “assisti”, talvez eu possa dizer, assim como todos da plateia, que participei da peça Feliz Ano Novo. É isso mesmo, o grupo teatral do Rio de Janeiro Teatro dos Sentidos, dirigido pela atriz e escritora Paula Wenke, desenvolveu um trabalho voltado especialmente para a tchurma do apagão, mas quem enxerga é igualmente bem vindo na plateia e, com uma venda nos olhos, tem a oportunidade de mergulhar no espetáculo da mesma forma que nós, deleitando-se com todos os outros sentidos fora a visão. Sim, todos mesmo! E as surpresas que tive com meus outros sentidos sendo provocados foi um dos pontos fortes da minha imensa emoção. Primeiro me surpreendi ao sentir os aromas de elementos presentes na narrativa. Logo depois, qual não foi minha surpresa quando os personagens compartilharam com a plateia comidas que compunham a cena, como biscoitos de chocolate, pipoca salgadinha (e eu sonhei pelo resto da peça com aquela bacia de pipoca passando de novo pela minha mão... ), e até champanhe para comemorar com eles a virada do ano. No carnaval da história, confetes e cerpentinas eram jogados abundantemente sobre nós, como uma chuvinha gostosa de alegria e surpresa. Sons dos mais variados tipos, produzidos pelos atores bem próximo da plateia, assustavam, emocionavam, faziam rir, criavam ansiedade, acariciavam, e sobretudo nos levavam para dentro das cenas. Esses sons e mais duas narradoras complementavam nosso imaginário com todas as informações necessárias para a total compreensão da trama, como uma espécie de audiodescrição, bem interativa e particular. Claro que a música também marcou presença, desde o começo, mas de repente um violino tocado ao vivo chegou surpreendendo e rasgando a emoção. Situações divertidas, comoventes, românticas, lúdicas e até de extrema tensão, como o naufrágio de um navio, foram vividas por todos nós.

Os textos e poemas de Paula, junto à brilhante atuação de todos os atores, inclusive mirins, conduziam com encanto aquela experiência inédita e inesquecível. Depois de comer, beber, rir e chorar (bastante...), ser convidada a acariciar o rosto de um personagem, sentir brisa, sereno, interagir com os bichos de uma fazenda, participar de um naufrágio, de um carnaval, de um reveillon, ouvir de perto o canto dos atores, recebi uma rosa, de verdade e sem espinhos. Despetalei-a inteira, enquanto transbordava de mim tudo aquilo intimamente mexido e tocado por aqueles carinhos que chegaram na alma através dos sentidos. As pétalas se soltavam entre meus dedos uma a uma à medida que se desenrolava o fim da peça, aquele auge de bagunça gostosa nas lembranças mais profundas, conscientes e inconscientes, quando todos os sons, todos os cheiros, todas as texturas já experimentadas durante o espetáculo, agora nos provocavam todos de uma vez, passeando entre a plateia, passando bem perto, afastando-se, como num sonho louco, como num momento especial da vida em que se repassa na mente as vivências mais marcantes. Depois de tanta emoção, derramei minhas pétalas sobre a Paula, foi minha homenagem e meu agradecimento.

Tudo isso aconteceu esta tarde na Ilha d´água, num evento interno da Petrobrás, em que participei cantando. Ao deixarmos a ilha, numa grande lancha, fomos todos juntos: eu, o violonista que me acompanhou, meu querido amigo Júlio Ribeiro, funcionários da empresa e todo o elenco da peça. Quando eu entrava na embarcação, uma vozinha gentil e acolhedora me ofereceu ajuda antes de qualquer outra; o dono da voz pegou-me pela mão e me orientou para sentar ali, num lugar vago ao seu lado. Na confusão do momento agitado, nem pude reconhecer a voz e nem perceber o tamanho daquela mãozinha, só depois que me acomodei no banquinho foi que descobri que quem estava ao meu lado e me ajudara com tanta naturalidade era o ator mais jovem do elenco, Yorran, de 10 anos de idade. Batemos um papão, e mais lindo que ouvi-lo falando sobre o público alvo daquele espetáculo, as pessoas com deficiência visual, falando sobre inclusão, foi ver e confirmar mais uma vez que projetos como este deixam suas marcas em quem assiste, em quem atua, em quem promove, em tantos quantos estiverem envolvidos. No desembarque, Yorran foi quem de novo fez questão de me ajudar e me guiar até a terra firme. No caminho mostrei a ele que o perfume da rosa ficara em minha mão, e continua até agora. Que o perfume da sensibilidade, da inclusão, das grandes ideias, fique nas mãos, na alma, na vida de todos , e que o Teatro dos Sentidos possa deixar seu rastro bom nos caminhos de cada vez mais plateias!

Feliz Ano Novo está em cartaz na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro até o próximo domingo, dia 28. Já é a segunda temporada do grupo na Caixa; a primeira fez tanto sucesso que foi preciso repetir a dose. Divulgue, convide seus amigos e confira! Na verdade a maior parte do público que tem comparecido não tem deficiência visual, e todos saem maravilhados com a experiência multi sensorial.


Paula Wenke e atores do Teatro dos Sentidos
Teatro dos Sentidos - Feliz Ano Novo
Local: CAIXA Cultural Rio de Janeiro
Av. Almirante Barroso, 25 - Centro
Tel.: (21) 2544-4080
Data: 23 a 28 de novembro de 2010
Horário: 19h30
Valor: R$15 (inteira) e R$7,50 (meia)
Capacidade: 150 lugares mais 4 para cadeirantes
Acesso para portadores de necessidades especiais
Classificação etária: 12 anos

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Filhos do Brasil

Pessoaaaaaal! Está chegando! Como muitos sabem, desde Junho deste ano estou na Oficina dos Menestréis, em São Paulo; entrei num curso/montagem da turma Mix Menestréis, que é formada por cadeirantes, colegas de apagão, pessoal da baixa resolução de imagem e mais todo tipo de malacabado! Ah, e tem até uns pessoal estranho também, que não tem nenhuma deficiência (aparente... ;) ), e desde Agosto estamos montando o musical Filhos do Brasil, de Oswaldo Montenegro, sob a direção de Deto Montenegro e seus assistentes Rica Santana, Léo Pinheiro, Patrícia Kfouri e Evelyn Klein. E eu estou aqui pra convidar todos vocês para irem conferir o resultado deste belo trabalho de meses no Teatro Dias Gomes, em São Paulo, dias 06, 07, 13 e 14 de Dezembro, sempre às 21:00h.
A Oficina dos Menestréis fez uma parceria com a ONG Vez da Voz e, pela primeira vez, oferece áudio descrição, para pessoas com deficiência visual, e interpretação em Libras-língua brasileira de sinais, para as pessoas surdas. Os dois recursos, que ficam por conta da áudio descritora Bel Machado e do intérprete de Libras Fabiano Campos, serão oferecidos no dia 13. O teatro também é completamente acessível para pessoas com deficiência física.
O musical, encenado por um elenco extremamente carismático, fala das mais diferentes misturas do nosso país, com muita dança, cantoria, textos e poemas; grandes músicas de Oswaldo, como Celeiro e Léo e Bia, também compõem o espetáculo. E eu não estarei só cantando, sou menestrel também! Boas risadas e fortes emoções estão garantidas para o público!

O teatro Dias Gomes fica na rua Domingos de Moraes, a cinco minutos da estação de metrô Ana Rosa. Ingressos a R$20,00 (vinte reais) comigo ou na hora (sendo a segunda opção a mais arriscada delas... a Oficina dos Menestréis costuma lotar suas sessões). Pessoal de Volta Redonda e redondezas, quem se interessar em ir, entre em contato comigo, estamos organizando transporte!
Mais informações sobre a Oficina dos Menestréis em www.oficinadosmenestreis.com.br

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Sem Perder o Foco

Sara e Rafaela Sessenta, intérprete de libras, em gravação no estudio do Telelibras.
Entrevista marcada. Você se programa, prepara seu ambiente, pensa no que vai dizer sobre seu trabalho ou sua instituição, o que precisa divulgar, e enfim chegou a hora, a equipe do telejornal chega, com cinegrafista, diretora, intérprete de Libras e... uma repórter que não enxerga? Como assim? Aí você pensa que se enganou, ou que se esqueceu que na verdade a entrevista era para a rádio, e não para a televisão, afinal repórteres e apresentadores cegos trabalham em rádio, não na televisão. Mas espera aí, tem um cinegrafista na equipe; então é isso mesmo: televisão. E o entrevistado se faz mil perguntas em pensamento: “Mas como vou falar olhando pra ela sendo que ela não me vê? Como ela vai saber onde é minha boca pra botar o microfone pra mim? Como ela vai ler o TP na hora de apresentar o jornal? Como ela faz pra olhar para a câmera se ela não vê?” A surpresa e as dúvidas são comuns entre as pessoas que me vêem chegar com o microfone do Telelibras na mão para entrevistá-las. Pois é, essa repórter e apresentadora sou eu, então não há pessoa mais indicada pra contar pra vocês uns segredinhos e revelar como tudo isso pode funcionar. Vamos lá!
Há mais de 3 anos eu era apresentada ao Telelibras (botar link pro texto sobre o telelibras no blog), como já contei aqui. Eu tinha baixa visão e entrei no telejornal como repórter especial, gravando externas na rua, entrevistando pessoas interessantes e dando dicas de cultura, cidadania, acessibilidade, enquanto as matérias de estúdio eram gravadas por jornalistas sem deficiência. Pra mim era fácil seguir a luz da câmera, principalmente em ambientes mais escuros, onde ela se destacava. Direcionar o microfone para os entrevistados também era moleza. Papel escrito pra me orientar quanto as informações do entrevistado já não me servia, mas memorizar pra mim nunca foi problema, então eu decorava tudo. Coisa de um ano depois, fui promovida a apresentadora, inaugurando a presença de apresentadores com deficiência também no estúdio do Telelibras. Bom, agora as matérias eram maiores e a linguagem mais formal, nada de improviso, os jornalistas liam os textos todos no TP. Sem problemas, exercito mais um pouquinho a memória e levo meus textos decorados. Assim fiz por um bom tempo. Só que o jornal foi crescendo e a quantidade de textos por jornalista aumentando; e aí eu precisava escrever meus cinco ou seis textos, mandar para a revisão, receber os textos de volta, fazer os ajustes solicitados, e acabava me sobrando muito pouco tempo pra estudar e decorar tudo aquilo. O Telelibras ainda não é um telejornal diário, e veiculamos notícias frias, por isso gravamos num mesmo dia vários textos de uma vez, pra ir soltando aos poucos. Então, gravar seis textos decorados, um atrás do outro, começou a me embananar.
Um belo dia, em casa, veio a idéia, que não sei por que não veio antes: E se eu aproveitar a técnica que já uso em casa informalmente há anos? Desde que comecei a usar o computador, sempre com os leitores de tela, lá nos meus 12 anos, brinco de ponto eletrônico, ou seja, ouço a voz sintetizada aqui do computador lendo um texto e falo em delay, como um eco, reproduzindo em voz alta exatamente o que acabei de ouvir no fone de ouvido um segundo atrás. Sempre achei tão bonito uma pessoa lendo pra outra; e eu, como não podia ler com os olhos, fui me acostumando a este método quando queria ter o gostinho de ler em voz alta pra alguém. Os sintetizadores de voz podem ter a velocidade, volume e entonação ajustados a gosto do freguês, então configurei o moço que mora dentro do meu computador num ritmo confortável de acompanhar e fiz o teste. Eu havia feito algo parecido uma vez, quando fui mestre de cerimônias de um evento cujo roteiro não tinha ficado pronto a tempo de eu decorar. Então uma pessoa ficou nos bastidores narrando por um radinho Nextel o que eu deveria falar. Mas agora, no Telelibras, eu ouviria uma voz sintética. Como ouvir uma voz completamente robotizada e narrar com entonação humana? Nessa vida tudo é prática, e com o tempo fui me ajustando e aprendendo a quebrar a frieza e o ritmo retilíneo do amigo falante aqui.
Tudo foi ficando prático e fácil, mas aí veio o “apagão”, e com ele novos desafios... Para a solução do TP nada mudou, até hoje, o fone de ouvido, o moço que mora dentro do meu computador e, claro, o computador, formam meu ponto eletrônico improvisado e são meus companheiros inseparáveis de estúdio. Mas agora não tinha mais como seguir a luz da câmera pra saber onde ela estava, agora direcionar o microfone para o entrevistado no escuro já pareceu impossível. Bom, pelo menos a espuminha que encapa o microfone aliviaria uma possível nocauteada na boca do pobre do entrevistado... :) Nós do Telelibras nunca perdemos as esperanças nem o bom humor, e em momento algum pensamos em desistir, nem da nossa causa coletiva e nem da superação de cada um do grupo; se ninguém nunca ensinou pra gente o melhor método de tornar viável o trabalho de uma repórter e apresentadora cega, a gente descobre! No começo era aterrorizante a sensação de olhar para um ponto fixo no nada sem nenhuma referência de luz ou de som, e enquanto ainda não inventam uma câmera com sinal sonoro, para os treze bilhões de apresentadores cegos mundo a fora se orientarem, o jeito era ficar de estátua, mexendo só a boca, pra não sair da direção que a voz do cinegrafista tinha me apontado antes de começar a gravar. Mas aí eu precisava virar para o lado do entrevistado e quando eu voltava a olhar a câmera... cadê a câmera? Era impossível voltar a olhar para o mesmo ponto, e aí eu concluía a matéria direcionada pra janela, pro cristo redentor, pro Evereste, pra tudo, menos para a câmera. Sugeri então que o cinegrafista desse estalinhos de leve com os dedos abaixo da lente da câmera quando eu estivesse para desviar o olhar dela, mas nada feito, o microfone é muito potente e no estúdio silencioso capta tudo! Já fora do estúdio, nos locais sempre barulhentos onde gravamos, meu ouvido é que não capta nada... Pensemos numa outra solução. Um belo dia ela veio, durante uma gravação de estúdio, trazida pelo Roger Souza, editor e um dos cinegrafistas do Telelibras. Ele posicionou meu pé direito no chão de modo a apontar exatamente para a reta da câmera, e aí, sempre que eu tiver dúvidas de para onde focar o olhar, concentro a atenção na ponta do meu pé e retomo a referência. É como se meu pé apontasse para a base de um poste imaginário, eu visualizo na mente este poste e direciono o olhar para um ponto dele na altura do meu rosto. Sim, é um trabalho de consciência corporal e concentração intensa, e bastante fácil quando se deve conciliar com a atenção no fone de ouvido, na entonação, na respiração, no gestual, na narração e, se sobrar fôlego, na notícia.
Bom, mais um caso resolvido. Agora ainda faltava descobrir como abordar o entrevistado sem golpeá-lo com o microfone, sem olhar para o peito no lugar do rosto, sem dar nenhum furo. A solução veio naturalmente, e pode até soar simpática. Antes da entrevista, e mesmo em alguns momentos durante a gravação, toco o ombro do entrevistado, e a partir da altura que percebo, calculo a direção do rosto e da boca. Pronto, agora era só a prática para deixar todos esses recursos funcionando em harmonia. Microfone, câmera, ponto eletrônico e eu nos entendemos cada vez melhor e hoje dá tudo sempre certo! Mentira! Tem dia que sai tudo errado... Em eventos longos e movimentados o Telelibras conta com o trabalho de dois ou mais intérpretes de Libras, que se alternam ao lado do repórter nas gravações. Ao fim de toda matéria, o repórter se apresenta e apresenta o intérprete ao lado. A repórter da vez era eu, e o intérprete... Hum, o intérprete... depois de umas dez entrevistas, cada uma traduzida por um intérprete diferente, quem era mesmo o intérprete que me acompanhava? O intérprete de Libras em geral se mantém silencioso enquanto sinaliza, então eu não podia me orientar por sua voz. Puxa, se ao menos ele estivesse do meu lado, eu poderia tentar identificá-lo pelo cheiro. Mas não, ele estava à direita do entrevistado, que estava à minha direita. Eu me concentrei em tudo, no foco para a câmera, na altura da pessoa, no microfone, nas perguntas e respostas, tudo fluindo perfeitamente bem numa entrevista riquíssima, até que: “Sara Bentes e a intérprete Rafaela Sessenta para o Telelibras!” Ops, morremos na praia; ouvi a risada do Fabiano Campos, o intérprete da vez, e não acreditei no que acabara de fazer. A Rafaela Sessenta já tinha ido até embora. E aí, tome risadas, e fôlego pra gravar tudo de novo...
O Telelibras e seus profissionais seguem se aprimorando, para atender a um número cada vez maior de pessoas, e hoje já são diversos portais na Internet e alguns canais de TV que transmitem o telejornal mais inclusivo do Brasil. Assista em http://www.vezdavoz.com.br/site/telelibras.php

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Entre crises de rins e de riso

Pessoaaaal! Quinze diazinhos atarantados esses, que nem tive tempo de botar a boca no mundo. Mas cá estou de volta, cheia de saudades e alegria! Dentre outras coisas, estive às voltas com uma situação inesperada, que me trouxe muita dor e me fez ver algo novo dentro de mim, algo que vem se solidificando e tomando forma há algum tempo, algo localizado mais exatamente nos rins. Pois é, eu criava duas pedras preciosas dentro de mim e nem sabia! Gente, e as crianças são grandes... Agora estou aqui, sonhando com um parto tranquilo e pensando nos nomes para as gêmeas. Quando elas nascerem, estou pensando em leiloar; segundo meus cálculos (renais) pode dar uma boa grana! J
As preciosas deram sinal quando eu visitava pela primeira vez uma nova amiga, e dei foi trabalho pra ela e pro pessoal de Pirituba, em São Paulo. Bora para o pronto socorro; e aí foi remedinho na veia pra cá, injeçãozinha pra lá, e a dor e o mal estar foram passando e consegui até andar! É, minha gente, só quem já teve uma crise dessas sabe o drama que ´é... Saímos do PS já dando risada e fazendo piada com os detalhes trash do episódio vivido. No dia seguinte, já em casa, crise de novo e mais um passeiozinho no hospital. Aí sim pude fazer alguns exames, pois até então eu nem havia sido apresentada às duas filhotas, o motivo da dor. O enfermeiro me empurrava na cadeira de rodas rumo à sala da ultrassom e precisou dar uma ré. Automaticamente, apitei: “Pi-pi-pi...” Claro, normas de segurança no trânsito!
-Ora, já está brincando? Então já está boa! disse ele, quase desdenhando da minha dor, obviamente sem poder medi-la.
Na verdade não é bem assim, moço. pensei. Será que ele ainda não sabe que a brincadeira e o riso aliviam a dor e curam? Acho que não, nem ele e nem a maioria das pessoas. Na verdade todos sabem, afinal a ciência já deu conta de explicar toda a química do fenômeno, mas talvez as pessoas apenas não se permitam brincar e rir nos momentos em que mais se precisa. Desde os meus doze anos, gravo e reúno gargalhadas de familiares e amigos. É isso mesmo: eu coleciono risadas, as mais sonoras e espontâneas possíveis. Felizmente, a coleção cresce até hoje, e meu sonho de colecionadora é capturar a risada do Bira, do sexteto do Jô. Algumas gargalhadas infantis da coleção, das mais antigas, hoje ainda vivem com o mesmo vigor, agora em bocas adultas. Outras ficaram apenas no magnetismo da minha fitinha cassete, e nas lembranças de infância de seus donos. Por que só as crianças podem perder o fôlego de tanto rir?
Eu ainda não aprendi a rir alto, como as gargalhadas escandalosas que amo ouvir, mas se tem uma coisa que sempre soube fazer muito bem é rir, e com direito a crises de riso memoráveis. E dentro dessa disciplina, a lição que tenho sido convidada a estudar com capricho é “Rir de si mesmo”. Após vinte e tantos anos de estudo prático, destaco uma frase que resume toda a lição: Quando não tem graça a gente põe! E aí, o gostinho do café, o cheiro bom de um sabonete, a textura do cabelo de alguém que a gente gosta, um raiozinho de sol, uma música cantada com paixão, coisas que já têm graça mas que a correria nos faz esquecer, crescem diante de nossos sentidos e nos divertem como grandes feitos.
Há uns dois meses, topei com Oswaldo Montenegro andando por Ipanema. Fiz questão de abordá-lo e contar a ele que estou na montagem de um dos seus musicais, o FILHOS DO BRASIL, sob a direção de seu irmão, Deto Montenegro. Esses sincronismos do universo... Eu jamais havia esbarrado no moço na vida, e justamente agora eu acabava de entrar na Oficina dos Menestreis e, mais do que isso, estava curtindo tanto o trabalho! Conversamos muito rapidamente e ele concluiu o diálogo dizendo:
-Espero que vocês estejam se divertindo bastante na montagem!
-Não tenha dúvidas disso. respondi feliz.
Esta é a filosofia da Oficina dos Menestreis, e é comum ouvirmos dos diretores e assistentes um “Divirtam-se” logo antes de iniciarmos uma cena ou mesmo um exercício. Quem me vê almoçando no ônibus de viagem pra São Paulo pra ganhar tempo e chegar pontualmente nos ensaios, andando pelas pedras da rua da Alfândega e do SAARA procurando figurino, carregando mochila, mala a caminho do teatro, decorando textos dentro do metrô e me perdendo por vezes num palco que ainda não domino como a palma da minha mão, quem vê todas as dificuldades e desafios de todos os integrantes da Turma Mix Menestreis, formada por cadeirantes, pessoas com deficiência visual e com outros tipos de deficiência física, nos ensaios e em toda a preparação para a peça, pergunta: “Se divertir? Com essa trabalheira toda?” É isso aí: sem ou com trabalheira, o negócio é se divertir! Ninguém nos iludiu dizendo que a vida não seria trabalhosa, e nós topamos o desafio assim mesmo. Então, está feito o pacto, comigo mesma: no que quer que eu faça, vou encontrar ou colocar graça. Se um dia eu esbarrasse com Deus pelas ruas de Ipanema, ou de Pirituba, ou do SAARA ou do fim do mundo, e ele me dissesse “Espero que vocês estejam se divertindo bastante na vida que eu lhes dei para viver”, eu poderia responder por mim, com o mesmo entusiasmo que respondi sobre a montagem: Meu amigo, não tenha dúvidas disso!

Sara em pleno salto no pula pula, com braços e cabelos pro ar, e o sol de fundo