segunda-feira, 24 de março de 2014

Pergunta Idiota, Tolerância em Exercício 2

Pergunta Idiota, Tolerância em Exercício 2
- E outras pérolas -



Como aqui no Boca promessa é dívida, hoje compartilho com meus leitores queridos mais um trechinho do acervo de perguntas idiotas, respostas malcriadas e outras pérolas que venho colecionando ao longo dessa vida de “apagão”. Então lá vai, abobrinhas que ouvi e respostas que nem sempre a elegância me permitiu dar:

Taxista para em frente à minha casa pra me pegar e me vê sair sozinha do portão com Izadora. Ele sai apavorado do carro, logo encontra a imagem de minha mãe lá no alto na janela da varanda e troveja com ela:
 -Ô dona! Eu não sei o que fazer com ela não! Eu não sei pegar ela não! Ela vai machucar!
E eu, andando com Izadora em direção à voz dele, rio e tento pedir-lhe calma, mas seu pavor é tanto que ele parece não me ouvir; não ouve nem vê nada, e consigo achar a porta do carro e entrar antes dele, enfim conseguindo vencê-lo falando mais alto:
-Eu vou te dizer o que fazer comigo: em primeiro lugar, fica calmo, eu não mordo.
Depois de um riso tenso, ele relaxou um pouco, entrou no carro e conseguimos estabelecer um diálogo durante o trajeto. Chegando ao destino, ele conseguiu até pegar no meu braço e me conduzir, trêmulo, pela calçada da escola de dança.

Recepcionista de um hotel em São Paulo durante o meu check in se dirigindo à moça que foi apenas me deixar no hotel:
 -O quarto dela é no segundo andar. Ela sabe subir escada?
Não, só sei descer. (respondo em pensamento)
-Sei subir escada e sei falar também, pode perguntar pra mim. (essa sim eu falei)
Como ela riu sem graça e passou a se comportar bem, o festival de pérolas parou por aí. Mas neste caso a única pérola da pobre moça é tão carregada d significado social que daria pra desenvolver uma tese de mestrado. Mas, como nós não temos tempo pra isso e nem estamos fazendo mestrado, que tal brincar do jogo dos 7 erros? E se duvidar tem mais de 7. Analisa comigo: “O quarto dela é no segundo andar. Ela sabe subir escada?”
Erro 1: A escada. Pra começar, que hotel bandido é esse que não tem um elevador? Ali ninguém ouviu falar em acessibilidade?
Erro 2: “ela sabe subir escada” Será que ninguém ensinou pra ela a diferença entre saber e conseguir ou ela acha que a cegueira desce e compromete também as pernas?
Erro 3: “sabe subir” Será que, unindo a teoria de que pra descer todo santo ajuda à crença de que santos devem estar sempre perto de pessoas cegas, porque cegos precisam de um milagre e milagre é coisa de santo, a moça realmente acreditava que pra mim só seria possível descer e não subir as escadas?
Erro 4: “ela” A moça realmente achou que minha acompanhante, que eu mal conhecia e que nem ia ficar no hotel comigo, sabia mais sobre mim que eu mesma ou ela no fundo no fundo sabia que sua pergunta era tão chocante que eu não suportaria ouvi-la direcionada diretamente a mim?
Erro 5: Pra onde foi o treinamento de atendimento a pessoas com deficiência que seu chefe deveria ter proporcionado a todos os funcionários do hotel?
Erro 6: (E este é meu) por que eu não respondi o que pensei responder? Acho que ela nunca mais pensaria em perguntar o mesmo pra outro cego, e teria sido mais divertido...
Erro 7- Me ajuda aí! Brincar sozinha não tem graça... Se achar o sétimo erro comenta e conta pra gente!

 Funcionária de um certo grande banco ao preencher um cadastro de controle da minha conta corrente, provavelmente no item “escolaridade”:
 -Você é alfabetizada?
Não, não. Nunca estudei, não trabalho, e inclusive abri uma conta aqui pra depositar as moedinhas que ganho no semáforo. Você aceita depósito em moeda, não aceita? (Essa foi só em pensamento. Na hora fiquei tão chocada que não consegui elaborar verbalmente tudo isso.)
E depois de eu dizer, chocada, um “claro”, ela insistiu na subestima:
 -Mas você fez até que série? Você se lembra assim mais ou menos?
Por favor, alguém me traz um calmante... Essa bruaca confunde cegueira com falta de memória ou o quê? (em pensamentos espumantes de raiva)

Funcionário de empresa aérea me conduzindo para o embarque após já ter dado vários furos comigo durante o check in:
-Agora no portão de embarque pega na sua bolsa um dos papeis que te dei, aquele rosa.
Ah, claro, o rosa...  Moço, não serve o preto? Só tô vendo papel preto aqui, aliás tô vendo tudo preto. Ah meu Deus, o que está acontecendo comigo? Me chamem um médico!!! (em pensamentos gargalhantes)

Eu atravessava uma rua com uma amiga e inacreditavelmente no meio da rua (não perto de uma calçada, não perto da outra, mas exatamente no meio da rua) um senhor muito simples e com carregado e simpático sotaque mineiro para e diz à minha amiga:
-Óia, leva ela lá em Minas que lá no interior tem um peixe que ocê abre o fígado dele, pega o óleo, pinga no olho e ela vai ver tudinho!
Entre dar atenção a ele e ao ônibus que vinha em nossa direção, só consegui dizer:
-Mas moço, eu sou vegetariana!
E ele, voltando a andar e olhando pra trás, pra ainda nos encarar, insistia:
-Vai lá, pesca no rio, abre o fígado dele e pinga o óleo no olho que ocê vai ver tudinho!
Terminamos de atravessar a rua, entre a curiosidade e o riso, e ele, já do outro lado da rua, ainda acrescentou:
-Eu num sei o nome do peixe não, mas ocês procura lá o peixe que cura as vista!

Esta próxima faz sucesso contada ao vivo, por aqui não sei como pode funcionar, mas vamos lá e fica também a promessa de contar ao vivo pra vocês na primeira oportunidade.
Senhora japonesa (mas dessas bem bem bem japa, do tipo que está no Brasil há 50 anos e nunca aprendeu o português) viajando ao meu lado de Resende até São Paulo. Vale destacar que justo naquele dia eu precisava de verdade dormir na viagem. Mas ela, pelo jeito, precisava de verdade matar sua curiosidade... Talvez ela tenha esperado sua vida inteira pra entrevistar uma pessoa cega, e a sorteada fui eu... Pra simplificar, imaginem antes de cada fala dela uma boa cutucada em meu braço; e imaginem também Uma voz abrutalhada e num nível de volume que atendia a todos os passageiros do ônibus... Bom, agora com a imaginação preparada, acompanhem a entrevista referência em polidez e discrição:
Japa: Você cega nascença?
Eu, falando baixinho: Não exatamente, eu enxergava um pouco, depois perdi a visão.
Japa, condoída: Áiaaah...
Pausa pra reflexão, e elaboração da próxima e rebuscada pergunta.
Japa: Mas você enxerga poquinho, né?
Eu: Não, não, não enxergo nada.
Japa: Nada nada? Áiaaah...
Mais uma pausa, que aproveitei pra virar a cabeça pro outro lado, na ilusão de cochilar um pouco.
Japa: Mas você viajar sôzinha sôzinha?
Eu: É, tem que ser.
Japa: Áiaaah...
Outra pausa.
Japa: Você passear São Paulo?
Eu: Não, vou trabalhar.
Japa, mais chocada que nunca: Mas trabalha?!... Áiaaaaah!
E assim seguimos até São Paulo, numa tranquila viagem de 5 horas de cutucadas e gritos ninja.

Depois dessa, só me resta parar por aqui. Tenho ainda umas das boas pra compartilhar com vocês, mas é que haja estômago pra tanta abobrinha assim de uma só vez... Num próximo conto mais.
De novo, meus amigos, é importante lembrar que o papel dos mais informados é sempre informar, que parte da nossa missão enquanto pessoas com deficiência e pessoas que convivem com a deficiência de alguma forma é aproveitar cada oportunidade pra informar, com paciência, e reivindicar, pra que situações como essas acima sejam cada vez menos frequentes até desaparecerem da nossa sociedade. Mas... enquanto elas não desaparecem, a gente continua informando, e rindo um pouquinho que é bom demais... ;)