terça-feira, 9 de setembro de 2014

Num Picadeiro Sem Luz

Talvez já estivesse no sangue, em algum gene, em algum impulso do fundo da alma. Antes mesmo de aprender a andar, e ainda sem nada enxergar, eu pulava o berço. Ninguém sabia como, ninguém nunca viu; quando viam, eu já estava engatinhando no meio do quarto, feliz por ter me libertado. Ninguém viu também como, um belo dia da mesma época, fui parar no meio da escada sem corrimão que subia para o quintal. Sem falar das proezas, agora já maiorzinha e enxergando um pouco, em cima das árvores, brinquedos altos do parquinho da escola, camas elásticas e barras de exercícios nas quais minhas coleguinhas que praticavam ginástica olímpica, atividade que eu sonhava fazer mas não era recomendado, ensinavam-me a dar cambalhotas, pra frente e pra trás.


O tempo passou, esses impulsos aparentemente infantis foram adormecendo, ou se manifestando em forma de coragem pra sair pela vida. Mas a vontade de “voar, voar, subir, subir” continuava aqui, e quando assisti a um espetáculo de circo que envolvia pessoas com deficiência, em São Paulo, logo busquei meios de me incluir ali. Só que o grupo ainda não tinha ninguém com deficiência visual, e talvez tenha preferido não arriscar. Desconheço os motivos, mas as portas não se abriram. Anos depois, e agora vejo que na época certa, as portas de outro picadeiro se abriram pra mim. Despretensiosamente, e na verdade como um capricho, uma expressão de raiva transformada em movimentos, eu dançava numa mostra de artes no nordeste. Eu era convidada apenas para cantar, mas inventei de dançar também, uma dança do ventre diferente, onde a Izadora era minha parceira de dança, representando a bengala da tradicional dança árabe, bengala que simboliza a força feminina, a mulher guerreira. (link pro vídeo da dança: https://www.youtube.com/watch?v=c4doezLNhV8 ) Por esses sincronismos do universo, estava na mesma mostra uma antiga conhecida, a dançarina Viviane Macedo, que estava procurando uma pessoa cega pra completar um grupo num novo projeto de circo. Bom, foi assim então que fui parar no circo Crescer e Viver, no Rio de Janeiro, que montava o espetáculo “Belonging”, em parceria com a cia. inglesa de teatro e circo Graeae.

O primeiro dia no circo era tão carregado de alegria, expectativa e curiosidade que nem me lembro de muitos detalhes; lembro-me de explorar trapézio e lira e fazer mil perguntas sobre eles e não me interessar muito pelos malabares ou outras modalidades que não me tirariam do chão... E o mais importante que me lembro: naquele dia conheci meu primeiro mestre de aéreos, o Milton Lopes, um artista de Cabo Verde, simpático e talentosíssimo que já trabalhava com circo em Londres havia alguns anos e que tem uma deficiência em uma das mãos. Ele nem chegou a me ensinar tantos truques assim, pois logo teve que retornar a seu país, mas as experiências que ele compartilhava comigo e suas considerações filosóficas e poéticas sobre o circo, contadas sempre com sua voz serena, inspiraram-me segurança e coragem pra continuar e passar por cima dos impulsos de desistência, mesmo quando o primeiro calo das mãos arrebentou, quando a curva da perna roxeou como quem toma uma surra, quando todos os músculos do corpo doeram e o primeiro sinal de tendinite no ombro apareceu.

Certa noite eu sonhei que estava no circo e que era meu dia de batismo. Eu estava sentada numa plataforma muito alta e tinha de pular dali no meio do picadeiro, sem rede, sem colchão nem nada. Todos aguardavam e me olhavam lá de baixo. Como em todo sonho eu posso ver, eu olhava lá pra baixo e a altura me fez paralisar de medo, e eu fiquei ali, até acordar, apavorada. Naquela manhã fui pro circo e descobri que logo naquele dia todos os alunos deveriam mostrar um número aos diretores e a todo o grupo. Assustada, fui reclamar com o Milton, argumentando que eu ainda não tinha um número pronto, que ainda não tinha segurança pra executar sozinha o pouco que havia aprendido. E parece que meu sonho estava estampado em meu rosto quando ele respondeu: “Então apresente o que você tem e nos brinde com o seu medo.” Uma emoção muito forte me bateu, como sempre me bate de novo quando me lembro, e ali entendi: no circo ou na vida, o medo vai sempre andar junto da coragem, e a beleza está em ficar amiga dele, porque ele é humano, assim como nós.

Numa corrida contra o tempo, porque deveríamos adquirir condicionamento e experiência para deixar pronto um espetáculo em breve, passei pelas mãos de alguns outros queridos mestres (Lurian, Vânderson, Dadá, Tina, Sarinha, Nina), todos aprendendo na prática como ensinar performance aérea a uma pessoa que não enxerga. E, entre sustos, tombinhos, entraves, descobertas e muita persistência, fomos aprendendo todos juntos. Tocar com as mãos os professores e colegas em suas performances, além da experiência que eu já tinha com a dança, foi o que me possibilitou me desenvolver na lira. Ah, é claro, sem esquecer ainda do mais importante: acreditar, e ter ao meu redor pessoas que também acreditavam.

Eu teria história pra mais de metro pra contar a vocês sobre minha experiência no circo, além das histórias e ensinamentos que ainda vou viver ali, pois estou só começando! Pra fechar, deixo então pra vocês dois trechinhos do nosso espetáculo “Belonging” e uma breve tentativa de descrição da minha sensação na lira durante o espetáculo:


Quando dou o impulso com o pé no chão para fazer girar a lira e ela começa a subir, é o rompimento, com o chão, com o mundo real, com o concreto, porque agora a lira sobe, sobe, girando rápido, e continua subindo, até chegar numa altura suficiente. O giro constante e a força dele em meu corpo trazem a tontura. Do enjoo já me livrei previamente com uma homeopatia contra enjoo que tomo antes do espetáculo começar. A música parece rodar em torno. O chão não existe. A única coisa palpável e firme que tenho ao meu alcance é a lira, e agora somos só eu e ela. Começo meus movimentos, corpo e mente estão muito acesos, atentos. Minha vida está em minhas mãos. Não consigo pensar em nada. Já nem ouço a música, só sinto a música, sou a música, sou a lira, somos as três uma coisa só, interligadas e interdependentes; minha coreografia tem que acompanhar o tempo da música, meu corpo tem que acompanhar o giro da lira, e a lira é parte do meu corpo, pois não podemos perder o contato um só segundo, seja pelas mãos, pelas pernas, pelo tronco. A extrema concentração, um fluxo único de energia, a tontura, a ausência de chão e de luz, tudo isso me leva a um transe consciente de liberdade. Sim, é ser livre, é estar cara a cara com o medo e poder dizer na cara dele quem é que manda aqui. É não ter chão pra tatear ou tropeçar, é não ter frente pra me preocupar, já que estou girando e qualquer frente é frente, não tenho que me preocupar se estou de lado ou de costas para a plateia. É ser livre porque é dançar e voar ao mesmo tempo. É ser livre porque é ser e estar, integralmente, no aqui e no agora.